segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O Monstrengo - Fernando Pessoa


O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou trez vezes,
Voou trez vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,
Trez vezes rodou immundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-rei D. João Segundo!»

Trez vezes do leme as mãos ergueu,
Trez vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer trez vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quere o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
D' El-rei D. João Segundo!»

Comentário de João Manuel:Este é um dos poemas mais conhecidos de Mensagem. Aquando das suas duas primeiras publicações chamava-se "O Morcego" e referia "o morcego que está no fim do mar..." mas o ser simbólico foi dignificado pela transformação em mostrengo na revisão anterior à edição de Mensagem em livro.
O poema simboliza, claro está, o medo do desconhecido (o "mostrengo") que os navegadores portugueses tiveram que vencer. A causa próxima dessa coragem é, segundo Fernando Pessoa, as ordens do rei D.João II. Existe uma razão para isso: quando Gil Eanes voltou de uma tentativa falhada de dobrar o Cabo Bojador, o Infante mandou-o voltar para tentar novamente e o navegador venceu o temor para não desagradar ao seu bondoso patrono. Mas com D.João II o trato era diferente porque ele era o tipo de homem que não admitia que aqueles em quem confiara falhassem- os comandantes preferiam enfrentar todos os dragões do mar à fúria do seu senhor e por isso o poema encerra também uma ironia- a natureza da "vontade" que ata o homem do leme à rota é que o temor do seu rei é maior do que o terror do mar ignoto!

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